AMOR

    Há de acreditar que tudo é passageiro, o homem ingênuo. Mas raramente compreende o que é o tempo — ou a consciência dele — é condição daquele que prevê. Seria dado a outra criatura o dom de antever a própria finitude?

    A nenhum ser é concedida tal graça: assistir à vida passar e nela depositar a ansiedade da partida. Ó doce vida — tarde te amei, e em ti ardi com o mais intenso dos desejos.

    Houve um tempo em que entreguei todas as minhas forças ao querer. Joguei damas com meus ossos, ofereci meu corpo como tabuleiro, enquanto depositava num instante só o empenho de mil homens mortos.

    Há tanto por dizer — e, no entanto, quase nada conduz à clareza ou se atreve a nomear o que importa. Amar, afinal, não se limita ao tempo: ele resiste em forma de lembrança, vive na continuidade silenciosa dos gestos, nas pegadas do palhaço que sorri ao cair.

    O sentimento ergue e destrói muros invisíveis. Revela-se em olhares, em odores, em formas de amar que não se explicam. É por isso que falar do tempo é tentar dar forma ao amor que não se extingue.

    Com o tempo, erguem-se castelos nos cumes mais altos, constroem-se os cercos mais ferozes, aperfeiçoam-se as falácias mais hábeis. Mas nada disso impede o fim: os olhos que se apagam, o destino sombrio do homem que não soube ser digno.

    Ao carniceiro que há de desmembrar as fibras da minha carne — a ele, meu respeito. Pois será o executor do meu fim merecido. E eu partirei em paz, pois vivi bem os meus dias: amei devidamente.

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